Carta 37

02/07/2013 12:32

De: MARIA

Data: 05/05/2009 22:03

Caro pastor Solon,

Apesar de hoje não congregar em igreja alguma, te comprimento com a paz do senhor, pois a tenho em meu coração.

Sou do (...), terminei nesse momento de ler sua experiência na icm, uma amiga que ainda hoje faz parte da "obra" que me enviou, creio que deve estar passando por conflitos.

Durante 8 longos anos da minha vida eu tentei fazer parte dessa tal "obra" mas nunca me enquadrei, pois apesar de bem jovem (17 anos quando me batizei em 94), sempre questionei algumas coisas, e questionava em reuniões de jovens, em reunião de novos convertidos...

Lembro-me de um casal de noivos que eram bem ativos na igreja, ele instrumentista e ela prof. de crianças, eram jovens que se doavam, mas quando confessaram que haviam se relacionado sexualmente foram excluídos de maneira cruel, e proibidos até mesmo de assistirem aos cultos. Fiquei chocada e um dia perguntei à um obreiro, numa reunião de jovens, por que eles não podiam freqüentar os cultos, ele me respondeu que aquele casal havia maculado a "obra", eu retruquei dizendo que Deus oferecia perdão, ele disse: então que Deus os perdoe

Eu ironizei: Então Deus perdoa, a maranata não?!

Ele simplesmente se calou.

Eu sempre fui vista como uma desacertada, pois visitava igrejas como a Assembléia, Batista e nunca deixei de ir ao casamento de uma amiga por ter sido realizado na católica. Ouvia músicas, ia ao cinema, lia muita literatura brasileira e evangélica, escutava a rádio novo tempo ( que pertence à igreja adventista), e não escondia isso de ninguém.

Durante os 8 anos que permaneci lá, nunca fiz parte de grupo algum da igreja, (só o de jovens), e também nunca fiz questão. Tentei por diversas vezes freqüentar outras denominações mas isso é muito complicado pra quem estava acostumado com a organização da "obra", acredito que entenda do que falo.

Enfim, costumo dizer que não saí da igreja icm, pois quem sai acaba voltando, eu me libertei e ainda digo para minhas amigas que estão lá, e que tentam me fazer retornar, "que quando o filho do homem vos liberta, verdadeiramente és livre", algumas dizem que sou louca, outras pedem misericórdia e eu me sinto realmente livre!!!

Fico realmente feliz por existir esse trabalho evangélico, que tem como pastor alguém que passou por essa experiência, que o senhor passou.

Peço para que Deus os abençoe hoje e sempre!!!

Um abraço!

Ps: Quando converso com algumas amigas sobre a icm, a impressão que tenho é de que elas fundiram Deus e a icm numa só coisa, confundem denominação com Deus. E o pior é que quando tento mostrar isso pra elas, elas quase me convencem de que sou louca.

Eu fico pensando: "meu Deus será que só eu que vejo isso???"

Me identifiquei muito com sua experiência.

 

De: pastor-solon   

Para: MARIA  

Data: 06/05/2009

Prezada irmã MARIA, que a paz do Senhor Jesus seja contigo.

É muito bom compartilhar da paz que está em seu coração. Recebi.

Se você ler a primeira parte da carta que escrevi com o título “Igreja, amor e relacionamentos ilícitos”, verá que sou um defensor da utilidade e necessidade de estarmos congregados. Não que isso, por si só, nos faça pessoas melhores ou piores, pois as pessoas são o que são, independentemente de onde estejam. Mas, pelo fato de que isso foi projetado por Deus e eu tenho que me inclinar diante daquilo que entendo ser o desejo do coração de Deus para a minha vida. É assim que eu penso, mas respeito sua decisão e não a julgo por isso.

Já percebi que você é uma pessoa que sabe pensar sem deixar de amar ou de ter fé em Deus. Sempre me alegro quando vejo que pessoas com esse nível de percepção absorvem o que tem de bom no meu testemunho. De fato, o meu relato é dirigido a pessoas que, como você, deixaram a ICM.

Quanto à sua amiga, que ainda é da ICM e lhe repassou o meu testemunho, creio que o conteúdo do site pode parecer ofensivo a ela, pois, como você mesma se referiu ao final de sua carta, ela não terá condições de compreender o que dizemos, uma vez que isso só é possível a quem já esteve dos dois lados, lá e cá, não é mesmo?

Sabe, querida, eu tenho três filhas jovens (13, 14 e 17 anos) que só me dão alegria na igreja e fora dela. Eu não consigo nem imaginar o que seria criá-las na ICM, pois como fui jovem e pastor ali, sei bem o quanto aquelas jovens sofriam com as exigências que lhes eram impostas. Eu não consigo imaginar minhas filhas andando de bicicleta no parque da cidade de saia. Eu não consigo imaginar minhas filhas fazendo coisas escondidas porque não podem conversar comigo (o pastor). Eu não consigo imaginar minhas filhas se revoltando comigo porque eu não estou presente ou não tenho tempo para passear com elas.  Eu não consigo imaginar minhas filhas aguardando uma revelação para encontrar o “escolhido”. Eu não consigo imaginar minhas filhas apáticas na igreja e sem entusiasmo pelo que fazem. Enfim, são tantas coisas que é melhor pararmos por aqui.

Sobre o casal de jovens a que você se referiu, creio que são desnecessários comentários. Os fatos falam por si sós.

Desacertada? Ora, de fato você era, não em relação à vontade de Deus, mas em relação às normas da igreja que você freqüentava. Por isso, aconteceu o previsível: quem não se enquadra, não consegue permanecer por muito tempo. O mais comum é que digam a seu respeito: ela não entendeu a “obra” e por isso saiu. Paciência. Pelo menos você sempre foi sincera, transparente e verdadeira. Continue assim.

Quanto à dificuldade de adaptação em outro lugar, creio que esse é o principal prejuízo na vida de um ex-ICM. Infelizmente, muitos vão morrer por causa disso – por não alterarem seus modelos mentais. Estarão fadados à infelicidade cultual porque criaram um padrão de adoração que mistura um culto a Deus com a reunião de crentes na igreja.

Ora, reunião de crentes é uma reunião de crentes. Nessas reuniões, as pessoas devem ser livres para cantar, para orar, para movimentar, para falar e para ouvir. Tanto são livres que Paulo ensinou a colocarem as coisas em ordem para que houvesse o maior proveito da participação de todos.

“26 Que fazer, pois, irmãos? Quando vos reunis, um tem salmo, outro, doutrina, este traz revelação, aquele, outra língua, e ainda outro, interpretação. Seja tudo feito para edificação. 27  No caso de alguém falar em outra língua, que não sejam mais do que dois ou quando muito três, e isto sucessivamente, e haja quem interprete. 28  Mas, não havendo intérprete, fique calado na igreja, falando consigo mesmo e com Deus. 29  Tratando-se de profetas, falem apenas dois ou três, e os outros julguem. 30  Se, porém, vier revelação a outrem que esteja assentado, cale-se o primeiro. 31  Porque todos podereis profetizar, um após outro, para todos aprenderem e serem consolados. 32  Os espíritos dos profetas estão sujeitos aos próprios profetas; 33  porque Deus não é de confusão, e sim de paz. Como em todas as igrejas dos santos, (1 Coríntios 14:26-33 RA)

A maior confusão se deve ao fato de termos fixado em nossa mente que uma reunião de crentes na igreja é um culto, onde deve haver ordem (ritual onde todos estão sentados em fileiras voltadas para uma única pessoa à frente e fazendo movimentos programados) com decência (silêncio litúrgico e aparência de santidade). Essas coisas estão nas nossas mentes desde que fomos levados, ainda crianças, a uma igreja e foram solidificadas ao passo que nos ensinaram que o culto a Deus é isso.

39 Portanto, meus irmãos, procurai com zelo o dom de profetizar e não proibais o falar em outras línguas. 40  Tudo, porém, seja feito com decência e ordem.” (1 Coríntios 14:39-40 RA)

Sobre a decência, gostaria de fazer apenas uma observação. Afinal, o que é essa decência a que Paulo se referiu? Segundo o costume da época, era indecente (vergonhoso[1]) que uma mulher falasse na igreja. Veja só:

34 conservem-se as mulheres caladas nas igrejas, porque não lhes é permitido falar; mas estejam submissas como também a lei o determina. 35 Se, porém, querem aprender alguma coisa, interroguem, em casa, a seu próprio marido; porque para a mulher é vergonhoso falar na igreja. (1 Coríntios 14:34-35 RA)

Portanto, se formos considerar isso para os nossos dias, boa parte dos “cultos” modernos, até mesmo os mais tradicionais serão indecentes. Observe que todos os textos citados fazem parte do mesmo contexto.

Agora veja bem, querida, o culto a Deus independe do lugar em que estamos ou do modo como nos comportamos. Vem de dentro do nosso coração. Ninguém pode dizer que eu estou ou não estou adorando a Deus olhando para o meu exterior, pois os verdadeiros adoradores adoram “em espírito e em verdade”. Isso não pode ser avaliado apenas com atitudes exteriores, uma vez que podemos estar em posição formal de adoração (segundo o conceito de cada um) e não prestarmos adoração ou culto a Deus.

Disse tudo isso apenas para tentar ajudá-la a diferenciar uma reunião de crentes, com visitantes ou não, de um culto a Deus. Se conseguirmos fazer essa diferenciação, não teremos dificuldades em adorar o nosso Criador mesmo se entrarmos em uma reunião onde todo o ritual cultual seja diferente daquele que estamos acostumados. Pessoalmente, eu adoro Deus em qualquer igreja. Não me escandalizo com nada. Se o hábito local é que todos fiquem sentados eu também fico. Se o hábito é que todos fiquem de pé, eu também fico. Se o hábito é que todos batam palmas, eu também bato. Se o hábito é que todos se movimentem, eu também me movimento. Se a reunião tem bom conteúdo, eu aproveito. Se a reunião é vazia, eu fico em oração silenciosa. Se a reunião for apenas um show eu aprecio o show. Sempre saio abençoado, ainda que o padrão da reunião do local seja diferente do meu. O culto a Deus sairá de mim (em espírito e em verdade) e não do local ou da forma como as pessoas se comportam.

“julgai todas as coisas, retende o que é bom;” (1 Ts 5:21 RA)

Por fim, vejo que você não é louca, mas livre e inteligente. Posso lhe assegurar que não é apenas você que enxerga essas coisas. Apenas perdoe-me por ter ousado em fornecer meu ponto de vista quando você não me pediu. Fiz isso para tentar convencê-la de que é melhor voltar a congregar, apesar de todos os problemas existentes nas diversas denominações. Se há coisas ruins e boas, fiquemos apenas com as boas, pois isso faz com que o mau não prevaleça sobre o que é bom.

“Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem.” (Romanos 12:21 RA)

O Senhor te abençoe e te guarde; o Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti; o Senhor sobre ti levante o seu rosto e te dê a paz.

Grande abraço,

Pastor Sólon.



[1] Vergonhoso: que causa desonra; indigno; infame, obsceno; indecoroso. Ninguém tem vergonha daquilo que é decente segundo a moralidade média.