Carta 283

26/06/2013 04:13

De: JOÃO, em 25/6/13

 

Pr. Sólon, Paz!

Sei que o senhor não tem interesse mais no que acontece na ICM, mas gostaria de pedir que o senhor fizesse uma explanação do ponto de vista jurídico.

 

Provavelmente o senhor tomou conhecimento dos recentes fatos da Maranata; a prisão, ontem, 24, de Gedelti, Amadeu e outros oito, conforme noticiado na mídia estadual e, agora nacional.

Ontem foi escolhido pela Justiça do ES o novo interventor da ICM, Antônio Fernando Barroso Ribeiro, engenheiro, e, segundo informações, ex-pastor da ICM.

 

Esse novo interventor fez algumas mudanças, não só na parte administrativa, mas também na parte eclesiástica. Os opositores desse interventor dizer que algumas mudanças que ele estabeleceu são inconstitucionais, ferindo a liberdade de crença e culto. E esse é o motivo de meu contato. https://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2013/06/noticias/cidades/1450813-lideres-da-maranata-praticavam-espionagem-contra-membros-e-ex-fieis.html

 

Elencarei abaixo as medidas que ele tomou e, se possível, me diga se há algum(ns) ponto(s) inconstitucional(is).

 

Desde já agradeço!

 

Atenciosamente,

JOÃO

1- As reuniões de jovens deverão ser conduzidas pelas professoras e ou professores da Igreja local, em dia e horário que melhor se adeque às necessidades de cada Igreja, já que não haverá mais transmissão via satélite para esta finalidade, podendo até mesmo ser realizada no mesmo horário do culto, na sala anexa ao templo

2 - A Escola Bíblica Dominical não receberá mais o sinal via satélite, devendo os Estudos Bíblicos serem ministrados de forma presencial, segundo a necessidade de cada Igreja

3 - O Presbitério Espíritosantense disponibilizará em seu site estudos bíblicos e mensagens da Palavra de Deus, que por conveniência do pastor local, poderão se valer dos mesmos, não sendo obrigatório o uso desta ferramenta

4-  O Presbitério Espíritosantense estará buscando os meios legais para que a “Rádio Web Maanaim” se torne uma emissora aberta, possibilitando ao público seu acesso através das ondas do rádio

5- O tesoureiro deverá  fazer a fixação mensal, no quadro de aviso das igrejas, do balancete, assinado pelo pastor e pelos tesoureiros, contendo as receitas provenientes dos dízimos e ofertas, bem como das despesas (não devendo conter nome das pessoas que contribuíram para preservação de sua privacidade),  bem como os valores enviados ao Presbitério Espíritosantense

6 - Os pastores e membros que deixaram a Igreja poderão escolher o templo que desejarem para se reunir, e serão recebidos com as mesmas honras e funções que sempre desfrutaram

7 - Todo o excesso de gasto de qualquer natureza que for detectado nas contas do Presbitério Espíritosantense será suspenso

8 - O Conselho Presbiteral está extinto. Os assuntos de natureza espiritual das igrejas serão tratados por um grupo de conselheiros constituído por sete pastores

9 - A estrutura de coordenação das áreas permanecerá no modelo atual, devendo seus coordenadores se reportar diretamente ao Grupo de Conselheiros do Presbitério Espíritosantense

10 - Deverão também os pastores das igrejas enviar mensalmente ao Conselho de Pastores, através do site do Presbitério Espíritosantense, um relatório contendo informações relativas a suas Igrejas

11- Estará disponível no horário comercial um telefone 0800 (ligação gratuita), que será um canal de comunicação aberto entre os membros das igrejas e o Presbitério.

 

          

De: Pastor Sólon

Para: JOÃO

Data: 26 de junho de 2013 04:09

Assunto: Situação recente da Igreja Cristã Maranata

 

Prezado irmão JOÃO, que a paz do Senhor Jesus seja com toda a sua casa.

 

Não pude deixar de notar que você tem bom nível intelectual e isso me intrigou, pois me parece que você já sabe as respostas para suas perguntas.

 

Seja como for, achei interessante a oportunidade que você me deu de expor minha opinião sobre essa questão, o que eu não faria se não tivesse sido provocado. Sim, considere minha resposta apenas como uma percepção dos fatos, uma vez que não tive acesso aos autos que documentam as provas colhidas no âmbito do inquérito policial, o qual culminou na denúncia apresentada pelo Ministério Público e que foi recebida pelo juiz competente.

 

Embora eu não tenha interesse em buscar informações sobre a ICM, não posso negar que elas sempre chegam até mim, seja pelo facebook, seja por e-mail, seja por comentários de conhecidos e, agora, até pela mídia. Como de costume, nunca dou crédito imediato a boatos ou informações partidaristas apaixonadas, grande parte delas de origens desconhecidas ou anônimas. Se não posso confirmá-las por meio de fontes confiáveis, prefiro não admiti-las como verdadeiras até que se prove o contrário.

 

No presente caso, suspeito que crimes realmente foram praticados por membros da liderança da Igreja Cristã Maranata. Permita-me, pois, antes de falar sobre a questão do interventor, apresentar algumas considerações sobre a prisão dos denunciados, as quais me levaram a crer na existência dos crimes noticiados pela mídia.

 

Entre as condições para o recebimento da denúncia de crime pelo Poder Judiciário está a “justa causa”, que é um conjunto de provas, ainda que provisórias, capazes de noticiar a existência de um crime e os indícios suficientes de sua autoria. Sem a justa causa não se inicia a ação penal condenatória.

 

Por isso, embora o juiz não necessite fundamentar seu despacho ao receber a denúncia, sob pena de exercer valoração prévia da provas coligidas na fase inquisitiva, o fato é que a denúncia não seria aceita se não estivessem presentes referidos indícios mínimos que constituem a “justa causa”. Ou seja, se a denúncia contra os nossos irmãos da Maranata foi recebida pelo juiz natural, dando início à ação penal condenatória, é porque há indícios mínimos de que os crimes existiram e que os prováveis autores são os denunciados.

 

Ante isso, afasto, preliminarmente, qualquer presunção de que esteja acontecendo uma perseguição religiosa. A meu ver, os crimes identificados (estelionato, formação de quadrilha etc.) aconteceram, embora somente após o decurso do devido processo legal, onde se garantirão aos denunciados oportunidade de ampla defesa e de contraditório, é que se poderá afirmar a culpabilidade de cada um dos denunciados.

 

Também, sobre essa questão é bom lembrar que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (CF art. 5°, LIV). Isso porque a nossa Carta Magna traz-nos outro princípio importante neste contexto: o da presunção de não culpabilidade, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (CF art. 5°, LVII). Somente após isso é que se pode falar em definitivo da culpa dos denunciados. Não se cuida de afirmar, a priori, a inocência deles, pois, se assim fosse, não haveria lugar em nosso ordenamento jurídico para a prisão cautelar, a qual sequer depende da existência de ação criminal.

 

Ressalto que tal medida cautelar, de caráter pessoal, detêm características singulares exatamente por apresentarem exceção à garantia constitucional de liberdade dos indivíduos até que lhes sejam imputadas respectivas sentenças condenatórias definitivas.

 

Dos princípios constitucionais citados decorre que a prisão processual somente poderá ser admitida quando indispensável à utilidade de futuro provimento judicial (natureza cautelar), não podendo servir como meio de se antecipar futura e incerta sanção penal.

 

Se, por um lado, há que se afirmar a compatibilidade da prisão preventiva com as citadas garantias constitucionais, por outro, cumpre reconhecer que a custódia processual somente se legitimará caso possua natureza cautelar. Nesse sentido, vejamos o que nos diz o art. 312 do Código de Processo Penal Brasileiro:

 

A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.

 

Note-se que a prisão preventiva existe para assegurar a utilidade de eventual sentença penal condenatória.

 

As hipóteses de detenção processual por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal possuem a peculiaridade de serem medidas cautelares. Num caso e noutro a segregação preventiva do acusado se revela medida necessária ao acertamento de sua suposta responsabilidade e à sua consequente efetivação. Sua decretação se dá sob o pálio da necessidade.

 

Assim, imagino que a prisão dos líderes da Igreja Maranata tenha se fundamentado na necessidade de segregação dos denunciados do seio da sociedade por conveniência da instrução criminal, uma vez que, segundo constou dos noticiários, eles estavam ameaçando e intimidando testemunhas e até mesmo membros do Ministério Público e do Poder Judiciário.

 

Disse “imagino” porque não vi a decisão que ordenou a prisão dos líderes da ICM. É fato que há motivos inclusive para que a decisão da prisão preventiva encontrasse espeque na garantia da ordem pública, pois embora o conceito de ordem pública seja controverso, doutrina e jurisprudência majoritárias o relacionam à necessidade de manter incólume o tecido social (no caso, dos membros da ICM), o qual restaria agredido com novos atos criminosos contra o patrimônio da igreja, o que poderia ocorrer caso os denunciados permanecessem em liberdade. Neste caso, assume uma tal prisão processual nítida função preventiva (e não cautelar). Visaria, neste caso, impedir a reiteração criminosa por parte dos denunciados presos.

 

Por último, há que se considerar a possibilidade de prisão preventiva para assegurar a aplicação da lei penal. Creio que não é este o caso da fundamentação utilizada nos autos que recolheram os líderes da ICM à prisão, uma vez que não se soube de intenção de fuga dos denunciados para escapar da aplicação de possível pena.

 

É bom esclarecer que a prisão processual não deve ser admitida em razão do clamor público, de modo que estou certo de que o magistrado que ordenou a prisão dos líderes da ICM não se deixou tocar pela comoção social que o caso vem apresentando especialmente em Vitória/ES.

 

A excepcionalidade da custódia processual recomenda a máxima cautela em sua concessão, de sorte a se evitar que sejam concretizadas situações em que o agravo ao direito de liberdade se revele injurídico. Isso porque, na hipótese de absolvição dos cidadãos submetidos a qualquer das modalidades de prisão processual, resta impossível a reparação do dano imposto, visto que não há como retornar ao status quo ante (tempo passado não pode ser restituído).

 

Por certo que, a estas alturas, os advogados da Igreja Maranata já devem ter ingressado com o remédio judicial adequado para a liberação dos presos, qual seja: o habeas corpus. Este instituto, voltado à salvaguarda do direito de liberdade, encontra-se previsto no art. 5°, LXVIII da Constituição Federal, senão vejamos:

 

“conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”

 

A ação de habeas corpus é diferenciada porque nela não há não há acusação. A lide que encerra envolve a pretensão daquele que sofre a coação ou a ameaça de coação ao seu direito de ir e vir. Nesta ação não se admite discussão sobre a matéria de fato, a qual há de vir incontroversa. Seu objeto limita-se à controvérsia sobre a matéria de direito. Nada obsta, contudo, que se discuta sobre as consequências jurídicas que advêm dos fatos da causa.

 

Quanto à questão da intervenção e das medidas adotadas pelo novo interventor, acredito que houve excessos, embora eu não conheça os termos do mandato que ele recebeu.

 

Se seu mandato foi exclusivamente para assegurar a preservação do patrimônio dos fiéis da Igreja Maranata, talvez fosse melhor ele impedir que advogados contratados e pagos pelos cofres da ICM sejam disponibilizados para cuidar de assunto pessoal dos denunciados. Sim, cada denunciado teria de arcar com as despesas de seus advogados, uma vez que a igreja não deveria gastar o dinheiro dos fiéis para defender interesses particulares. Ora, se algum membro da igreja, ainda que da Presidência, praticou algum crime, sua defesa é de seu interesse e não da instituição. É no mínimo esdrúxulo que o ofendido pague o advogado para o seu ofensor. E se isso está acontecendo, caberia uma ação de restituição em face dos denunciados.

 

Quanto às questões que envolvem as comunicações via satélite ou via rádio, creio que isso só seria de interesse da Justiça caso esses instrumentos estivessem sendo utilizados para a intimidação de pessoas com potencial de testemunhar contra os denunciados acerca de fatos que presenciaram. Mas, como eu disse antes, não conheço os limites do mandato que o interventor recebeu. Se os limites do mandato se restringem a questões administrativas, contábeis e financeiras, acredito que as únicas medidas cabíveis seriam as seguintes, e com os ajustes que destaco:

 

5- O pastor ou responsável em cada congregação, igreja ou trabalho deverá fixar mensalmente no seu quadro de avisos o balancete de receitas e despesas, devidamente assinado pelo titular e tesoureiros locais, dispensando-se o registro dos nomes dos contribuintes;

 

7 - Todos os excessos financeiros na manutenção administrativa das congregações, igrejas ou trabalhos, bem como nas despesas e investimentos do Presbitério Espírito-santense deverão ser justificadas e, caso se mostrem desnecessárias, poderão ser suspensas enquanto durar a intervenção na Igreja Cristã Maranata;

 

10 - Os pastores titulares de congregações, igrejas ou trabalhos deverão consolidar por Estado/Distrito Federal, mensalmente, suas informações administrativas, financeiras e contábeis e enviá-las via rede de computadores à Administração Interventora do Presbitério-Espírito-santense;

 

11- Estará disponível no horário comercial um telefone 0800 (ligação gratuita), que será um canal de comunicação aberto entre os membros das igrejas e a Administração Interventora do Presbitério Espírito-santense.

 

No mais, com todo respeito, embora com aparentes sinceras intenções, não acho cabível nenhuma das demais medidas adotadas pelo interventor da ICM, pois dizem respeito à organização de cunho espiritual da igreja. E, assim sendo, nem mesmo o Poder Judiciário pode legitimamente intervir nessas atividades espirituais, direta ou indiretamente, sob pena de infringir preceito constitucional que garante a liberdade de culto religioso e suas liturgias, senão vejamos:

 

Art. 5º “VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.”

 

Portanto, amado, creio que essas medidas que extrapolam o mandato concedido ao interventor da ICM deverão ser afastadas rapidamente pelo bom senso dele próprio ou pelo Poder Judiciário, caso ele não o faça.

 

Mesmo reconhecendo o esforço até aqui empreendido, parece-me que o Poder Judiciário está um pouco perdido neste caso da ICM, pois ainda não achou um ponto de equilíbrio para lidar com a questão da intervenção.

 

Por fim, amado, sei que meu exame foi superficial, mas é o que me veio à mente sem estudar detidamente a questão e sem conhecer maiores detalhes do processo.

 

O Senhor te abençoe e te guarde; o Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti; o Senhor sobre ti levante o seu rosto e te dê a paz.

 

Grande abraço,

Pastor Sólon.

 

 
 

 

 

 

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